Com Agulhas

Eu gosto de escrever, de inventar uns diálogos loucos em jantares imaginários. Eu gosto de roupas, invento uns modelos e luto pra dar as luzes, partos difíceis esses, idéias. Gosto de comprar roupas e sapatos, futilidades não, estilo próprio; não sou uma fashion victim - a vida é demasiado curta pra rótulos e embalagens estragadas. Eu gosto de café, de canecas e de planos de casamento. Gosto de mim, contudo e com tudo.

Com Canetas

Eu tenho um dois à esquerda na idade, mas não acho que sou tão velha. Chamo minha gata de nenê e dou apelidos adoráveis ao meu namorado. Eu tricoto porque me acalma, produzindo, me agradam as cores das lãs. Eu amo porque não vivo no gris, amor vivo, amo pessoas e filmes e livros e bichos. Eu tenho o Heitor, já me basta de tanto amor. Eu adoro a língua francesa, adoro as idéias parisienses e as boinas e os cafés.

O Livro Perdido

Não posso me esquecer da primeira vez que me leram. Mãos ávidas me reviraram, fizeram-me voltar e adiantar. Lembro bem, foi uma moça de uns quinze anos. Tinha as unhas pintadas de escuro e os olhos claros vidrados nas minhas palavras. Confesso, meio a contragosto, não acreditava que fossem amar a história que fui feito para contar. Eu mesmo a achava monótona, prolixa, inconsistente. Personagens impossíveis, diálogos super-elaborados.
Mas a menina me amou. Sorveu-me, letra a letra. Os olhos encheram-se de lágrimas, o rosto arredondado e pálido ficou marcado do preto da maquiagem. A boca riu, também, e as mãos tremeram várias vezes. A menina me carregava consigo para todo lugar que ia: na escola, me discutia com os colegas; nos jardins, relia trechos e suspirava para as flores; no cinema, me tirava da bolsa enquanto o filme não começava; no ponto de ônibus, adorava folhear-me e, dentro do ônibus, perdia a parada. Ela me amou, ela amou a história que eu contei.
Mas logo me acabou. E, na última página, senti medo de ser fechado para sempre. Ela foi bondosa, deu-se alguns instantes para simplesmente contemplar-me. Novamente folheou-me, cheirou-me, abraçou-me e acariciou-me a capa.
Fui guardado na mochila naquela noite. Lá, ao lado de outros livros e cadernos, fiquei triste. E se aquela moça era abençoada? E se só ela pudesse me amar e compreender? Afinal, esse autor gostava de uma historinha rebuscada, hein?
No dia seguinte, a menina me tirou da sua mochila. Pelo sol, a manhã ia em meio. Suas mãos me deixaram no balcão da biblioteca, ela ria ao conversar com os amigos de escola. Ela me comentava, me indicava aos amigos, dizia que eu era maravilhoso. Enchi-me de esperança, mas também fiquei triste. Ela me deixaria para sempre... Suas mãozinhas, seus olhos claros. Suas emoções não mais justificariam a minha existência. E se os próximos leitores me maltratassem? Não me entendessem? Ou pior, só lessem as minhas orelhas e resolvessem que já me tivessem decifrado?
Não havia nada que pudesse fazer. Cabe ao livro contar outra história, nunca a sua. Pelas suas páginas passam os sentimentos, emoções e dúvidas de personagens alheias a si. Ele dá voz a outros, o discurso que profere nada tem a ver consigo. Nada tem a ver comigo. E suas mãos me entregaram às mãos da moça da biblioteca, mãos calejadas cujas unhas, curtas, eram pintadas de roxo. A bibliotecária abriu-me, passou um instrumento em mim, o tal instrumento fez um agudo “Bip” e senti a minha primeira leitora me deixar.
A bibliotecária estava prestes a me largar na estante quando voltou. Novamente me abriu e passou o mesmo instrumento em mim. Falou algumas coisas a um rapaz, ele tomou-me em suas mãos pequenas e me colocou em sua mochila. Julguei reconhecer a voz dele ao se despedir da bibliotecária, pensei ser um dos amigos da minha primeira leitora.
Passei uns dois dias fechado em sua mochila, só via a luz do dia quando o menino tirava os cadernos e estojos... Certamente fazia as lições de casa, não tinha tempo para ler-me. Mas então, por que me retirara da biblioteca? Quando comecei a pensar em grudar as minhas páginas e impedir a leitura do jovem, ele abriu a mochila de novo. Se eu tivesse um coração pulsante, ele me denunciaria... Mas não precisei plagiar Allan Poe, o menino abrira a mochila para buscar-me.
Parecia impossível! Teria dois leitores em menos de uma semana? Será que o meu texto era assim interessante? Esse menino de mãos pequenas me folheou desinteressadamente, leu-me as orelhas com um ar de desdém, leu algumas palavras aleatórias na minha última página e atirou-me à cômoda. Senti-me ultrajado! Meu texto podia ser prolixo e mal construído, mas ele não descobriria esses defeitos com tamanha má-vontade ao folhear-me! O menino de olhos escuros, expressão sarcástica e cabelos cheios de gel não se deu ao trabalho sequer de ler meu prefácio! Como poderia desdenhar-me sem nem tentar conhecer-me? Odiei seu quarto, o cheiro estranho de sua casa, seus livros idiotas de jogos de interpretação de papéis e bobagens do tipo. Quis que seu gel acabasse quando fosse se arrumar para ver a namorada, quis que seu nariz quebrado infeccionasse e ele não pudesse respirar! Se ele mostrou tamanho desrespeito por mim, como tratará as pessoas ao seu redor? Um menininho inferior, diria, se perguntassem minha opinião. Espírito baixo.
Tão diferente da menina que me tivera antes... Tão cuidadosa, tão interessada!
E ele me deixou sobre a escrivaninha por dias, na época de retornar à biblioteca já sentia uma camada de pó em cima da minha capa. Em uma manhã chuvosa, o jovem tomou-me nas mãos e atirou-me, de qualquer jeito, sem qualquer consideração pelos meus sentimentos!, ao interior da sua mochila escura. Lá dentro encontrei os chatos livros de jogos e me aborreci. Queria desesperadamente voltar à biblioteca, talvez algum leitor melhor me pegasse para ler...
Vi a luz de novo quando ele abriu a mochila. Junto com a luz, ouvi umas vozes familiares e adivinhei a biblioteca da escola. As mãos pequenas do leitor obtuso me deixaram no balcão e se foram. Se tivesse boca e olhos, meu semblante estaria sorridente. Abriram-me, passaram o aparelhinho em mim e me levaram de volta à minha estante. Foi um alívio inominável, só então percebi o quanto o leitor inconseqüente era falador! Não calava nunca a boca, e o problema maior era não ter nada de útil para dizer.
Minha estante era a quinta de cinco, ficava no meio de três fileiras. Logo, eu podia ver os jardins da escola todos os dias. Sentia a luz e o calor do sol diretamente sobre minha lombada, minhas páginas sofriam um pouco com a umidade do inverno. Ouvia a algazarra das 10 da manhã e do meio dia... A tarde era sempre agitada, especialmente à uma, às quinze pras quatro e às seis. Nesses intervalos, havia filas na biblioteca. Eu nunca sabia se queria ser retirado ou não. Certamente a menina dos olhos pintados freqüentava a biblioteca sempre. Tal interesse, tal empolgação deviam ser fruto de constante leitura. Se pudesse suspirar, eu suspiraria... Sentia-me frustrado, meu objetivo na vida é contar uma história... Mas tinha medo de ser desdenhado novamente. E, nesses intervalos, minutos de correria, as bibliotecárias vinham às estantes e conferiam os números nas nossas lombadas com os números que tinham anotados em pedacinhos de papel. Tiravam livros, traziam livros... Eu suaria, se pudesse, com tanta angústia e ansiedade. Passos apressados, iriam os olhos das mulheres daquela biblioteca escolar se fixar nos números da minha lombada? Suas mãos me retirariam do ostracismo? Algum jovem descolaria minhas páginas? Durante as noites, adoraria ser retirado. Fazia frio naquela biblioteca e, às dez horas, as bibliotecárias fechavam as cortinas, apagavam as luzes e todos os barulhos familiares cessavam. Queria, sim, ser lido.
Mas ainda tive de esperar um tempo até que fosse escolhido por alguém. Mas fui escolhido, ao menos. Em uma manhã preguiçosa, em um horário diferente das algazarras, a bibliotecária veio. Ouvi seus passos, mas ignorei. Devo confessar que me havia habituado à calmaria da biblioteca. Quando dei por mim, ela estava comigo em seus braços! Fui aberto, registrado pelo tal aparelho e entregue às mãos descuidadas e compridas de uma menina. Esperei ser enfiado em uma mochila, mas ela me carregou embaixo do braço. Desceu as escadas e encontrou outras vozes, deviam ser colegas. Uma outra mão, pequena e de menino, me pegou. Ele deve ter me examinado, falou algumas coisas e devolveu o livro à menina das mãos feias. Julguei ter reconhecido alguma menção a minha primeira leitora, mas não dei importância. Voltaram à sala de aulas e me esqueceram em cima de uma classe.
Sol alto, vi a rua de novo. Senti o sol sobre minha capa, uma brisa entre as minhas páginas. As vozes conversavam, a menina que me tinha sob o braço parecia muito divertida pelas palavras do menino que me examinara e dos outros que a acompanhavam. Ria descontroladamente, se abaixava, perdia o fôlego e me derrubava. Não sabia como julga-la, seria uma tola? Uma ingênua? Talvez fosse meio maluca, talvez estivesse tentando ser aceita pelo grupo de adolescentes com o qual caminhava. Alguns minutos depois de deixarmos a escola, ela se despediu com muitas gargalhadas dos amigos. Correu, abriu uma porta e a escuridão caiu sobre mim. Subiu uma longa e íngreme escadaria, entrou em um apartamento e me deixou sobre um sofá.
E ali fiquei, esquecido, pelo resto do dia. A menina sentou-se ao meu lado, comeu doce, tomou leite, saiu, voltou, conversou com uma mulher que, pelo jeito, era sua mãe. À noite, depois do jantar, me tomou nos braços e levou-me a seu quarto. Resolveu ler-me, confesso que já perdia as esperanças. Tinha o rosto branco e normal, não era feia nem bonita. Olhos pretos, muito profundos, cabelos meio vermelhos da metade às pontas, castanhos das raízes a metade, aspecto seco. A menina me pareceu desleixada, mas quem se importa com aparência? Leu algumas páginas e se aborreceu. Largou-me sobre a cama e foi sentar-se ao computador. Passei um mês assim, a menina me pegava, lia um pouco e ia fazer outra coisa. Parecia se interessar mais pelo vôo de uma mosca do que pela trama desenrolada em minhas páginas. Acho que a pobre menina das unhas feias não pôde compreender-me, achou-me aborrecido porque tinha preguiça de buscar o dicionário. Então, não poderia ser diferente...
Depois desse mês, ela tomou-me nos braços finos e levou-me de volta à biblioteca escolar. Chovia nesse dia, a propósito do meu estado de espírito. Aborreci-me com essa leitora, mas não a desprezei. Talvez, um dia, ela possa tentar ler-me novamente e me compreenda. Tomara!
Voltei à minha estante com prazer. Não gostei muito da casa da leitora descuidada, era tudo muito úmido e levemente mofado. Tive medo de molhar-me em dias de chuva, quando ela me esquecia na janela aberta. Não foi o caso. Quando a bibliotecária me deixou em meu lugar na estante, comecei a pensar. Talvez meu destino fosse ser compreendido por poucos, quem sabe meu autor fosse alguém à frente de seu tempo? A menina dos olhos claros devia ser uma leitora à frente de seu tempo também... Queria ter sido comprado por ela, ou alguém como ela... Mas a vida em uma biblioteca é gratificante... Eu acho. Essa função, levar a literatura a esses estudantes alienados e analfabetos funcionais, é extremamente nobre. Mas esses estudantes não freqüentam a biblioteca... E, quando o fazem, é no desespero das provas finais... Eles nunca procurariam por mim. Mas ainda tinha esperanças, um dia teria um leitor como a menina dos olhos claros. Alguém que me compreendesse...
Mas fiquei um bom tempo esperando por algum leitor novo. Depois do primeiro mês na estante, me tornei menos exigente. Resolvi matar minhas esperanças, afinal, dizia um bigodudo, elas são o pior dos males. Qualquer um, por favor!!! Minha estória mal-elaborada e cheia de presunções estilísticas merece ser lida por alguém... Meu objetivo como membro de uma biblioteca escolar era tão nobre, mas jamais poderia ser alcançado sem os leitores... Não importava quão ignorantes, quão bitolados, quão obsessivos pela aparência eles fossem... Aceitaria homossexuais mal resolvidos, punks de boutique, esquizofrênicos, meninas com distúrbios alimentares, patricinhas à beira de um ataque de nervos! Contanto que completassem a leitura, conhecessem todos os personagens, acompanhassem o clímax e o desfecho. Sim, confesso, estava desesperado! Vi livros muito mais maçantes do que eu sendo retirados e devolvidos freneticamente, com listas de espera e bobagens do estilo. Acompanhei fenômenos editoriais fúteis, febres sugeridas pela mídia. Todos, todos inferiores a mim. Autores de um único sucesso, gente que não vai mudar o panorama da literatura mundial - como fez o meu autor -, eram requisitados como camisinhas no carnaval! Senti-me injustiçado e tive de esperar por meses...
Mas lembraram de mim... Já havia esquecido da sensação do toque humano na minha capa, como era ter minhas páginas reviradas por mãos e minhas palavras escrutinadas por olhos quando a conheci. A bibliotecária me buscou e entregou a uma menina muito peculiar. Ela tinha as unhas pintadas de verde, mãos bonitas. Colocou-me na mochila e a senti caminhar pela escola. Fazia frio. Perdido em palavras, nem percebi quando chegamos a sua casa. Logo ela abriu a mochila, me pegou, foi para a cozinha e preparou um café. Minutos depois, me abriu. Vi seu rosto grande, de formas inusitadas... Era quadrado, seus olhos eram bonitos, claros, lábios finos, nariz arredondado. Mas o impressionante eram os cabelos: um vermelho impossível, quase rosa, fulgurava na quase penumbra do quarto. Certamente a menina dos cabelos de cereja não nascera com tais melenas, mas a cor combinava perfeitamente com ela. E ela me leu! Enquanto bebia café, minhas páginas ficaram um pouquinho manchadas – mas nem me importei! -, me escrutinava. Essa menina me lembrou um pouco da minha primeira leitora, porém era menos... perfeita. Mas eu adorei os dias que passei em companhia da menina dos cabelos chocantes e, mais tarde descobri, voz ímpar. Ela me carregou por todos os lugares, eu conheci muitos amigos. Muito adorável, menina das unhas verdes, ela tocava o violino e namorava um guitarrista de longos caracóis. Ela me leu até o fim, talvez menos perdida nas minhas entrelinhas do que minha leitora ideal, mas prosseguiu entre minhas situações absurdas, meus personagens mal estruturados e minha trama descontrolada. E comeu sobre minhas páginas, senti-me parte de sua vida naquela breve semana. Ela me cativou, aquela menina violinista amável e dos cabelos falsos mais verossímeis dos quais já tive notícia.
Mas a felicidade de um bom leitor é efêmera... Logo fui devolvido à minha estante pela bibliotecária das mãos calejadas e unhas roxas. Mas tinha outra memória feliz para os dias solitários! E, de acordo com meus “cálculos” (livros de literatura não são muito confiáveis no que concerne aos números), seria muitos dias solitários. As férias chegavam... E eu não tinha qualquer esperança de ser retirado por alguém, nunca havia sido! Resignei-me à minha pequenez e comecei a me preparar para um inverno rigoroso e úmido.
Entretanto, qual não seria minha surpresa ao ser requisitado por um aluno no último dia de aulas! Sim, alguém quis me levar para casa e me decifrar com calma, durante um inverno inteiro. Que orgulho! Fui entregue a um jovem alto, corpulento, de mãos grandes. Enfiou-me em uma mochila estranha – um garfo fazia as vezes de chaveiro no zíper! – com pressa, correu escadas abaixo e saiu daquela biblioteca... Senti que era a minha última vez naquele prédio, se pudesse dar uma última olhadinha teria certeza de que sim. A mochila, por dentro, tinha toda sorte de bizarrices: velas de aniversário, lixas, uma pequena frigideira, talheres de plástico, um joão-bobo e, pasmem, um gato! Sim, havia dentro da mochila daquele jovem um felino doméstico! O animal dormitava enquanto o jovem parecia correr mais e mais. Não conseguia entender nada, estava perdido e com medo das unhas daquele animalzinho.
Quando o rapaz abriu a mochila, à noite, tomou-me nas mãos grandes de unhas descascadas e leu-me em poucas horas. Não soube como sentir-me, lisonjeado ou ludibriado: Como aquele jovem, por mais inteligente que seus olhos azuis bonitos e lábios imensos dissimulassem, poderia me entender em uma leitura dinâmica de três horas? Minutos depois de me largar sobre a mesinha de cabeceira, me pegou e, com uma lapiseira colorida escreveu coisas em algumas páginas minhas. Se eu fosse uma donzela... Talvez o tivesse deixado de ser naquele momento. Escreveram nas minhas páginas! Nada de acordo com minha trama escalafobética, imagino – o menino estilizou as palavras “Hot Shit” -, mas alguém me achou merecedor de palavras na borda do texto! Aquilo não parecia ser fácil em tais dias de novelinhas vespertinas adolescentes, entretanto eu o tive.
Vivi em tal estado de serena alegria e constante regozijo acadêmico durante dois dias. O idiossincrático rapaz pegou-me, enfiou-me na mochila bizarra e saiu. Naquela ocasião, o gato não estava lá – o que fazia a tal mochila bem mais acolhedora e ordinária – e os garfos estavam ensacados. Mal tive tempo de observar as outras coisas esquisitas que habitavam o interior daquela parada quando fui retirado de lá. O menino me entregava às mãos de outro rapaz, gesticulava e ria. Pareceu-me ansioso. O outro jovem me examinou com um olhar desprovido de emoção, como se procurasse defeitos em minhas páginas, capa e lombada. Nunca me havia sentido daquela forma, envergonhado e enojado. Fechou-me e, enquanto eu imaginava voltar às mãos descascadas do leitor afobado, largou-me sobre uma escrivaninha abarrotada de livros velhos e poeirentos, abriu uma gaveta e retirou dinheiro. Incrédulo, observei o menino escrutinador entregar a quantia – magra, por sinal – ao menino da mochila de gatos e apertar-lhe a mão suja. Não podia acreditar, tinha sido trocado por um nada de dinheiro e passaria o resto dos meus dias em uma pocilga! Ácaros nojentos comer-me-iam as páginas e a vida! Perderia a razão de ser naquele antro seboso e poeirento, cheio de mofo e umidade!
O menino sem emoções me levou a uma estante fedida e me pôs lá, entre dois livros velhos e ictéricos. Submeti-me ao cruel destino: ser barganhado em um sebo. Ao contrário da felicidade dos compradores que freqüentam tal tipo de estabelecimento, os livros odeiam essa situação. É vergonhoso, ser descartado ou trocado por outra publicação triste. Somos como cães abandonados por donos inconseqüentes: por que então nos compraram? Se vão se livrar de nós assim que outras prioridades se revelarem a eles? Pessoas sem coração vendem-nos em sebos, digo e repito. Não me importa se é ótimo encontrar uma obra em bom estado por um preço baixo, o leitor não foi deixado em uma estante úmida e poeirenta, freqüentada por ácaros e traças. Ponham-se nos nossos lugares! Sentia nojo de tudo, queria ser devorado pelas traças logo. Para não sofrer com o descaso desses mercenários, ser desdenhado pelo turbilhão de leitores de ocasião, somente interessados em adquirir as publicações pedidas pelas comissões organizadoras dos vestibulares.
Pude observar uma quantidade imensa de jovens espinhentos, meninas falsas e fedidas, professores interessados em edições antigas de livros banais, gente tomando chimarrão e fumando maconha. Uma menina gordinha tentava vender um livro mais caro do que o avarento jovem sem emoções queria pagar, então ela apelava a decotes reveladores de seus descomunais seios; uma idosa dama de sociedade tratava a pocilga como biblioteca, emprestando livros e tomando emprestados quando bem entendia. Sentia muita falta da minha velha estante na biblioteca escolar... Estava pronto a me deteriorar ali, pois nenhum olhar passageiro se fixava em mim, não havia quem me tomasse nas mãos e lesse minha contracapa. Sentia-me cada vez mais velho, mais mofado...
Até o dia de sol da minha existência! Ou ao menos, foi o que desejei. Em uma manhã preguiçosa de terça-feira, muito parecida àquelas de meu tempo de biblioteca escolar, o tempo frio e seco me agradou por ser pouco propício à formação de mofo nas minhas pobres páginas coladas. Já estava acostumado ao meu triste fado, seria esquecido... Minhas frases, apagadas e manchadas. Entretanto, tivera uma leitora sincera e apaixonada, que é mais do que muitos livros puderam ter um dia... A lembrança da menina de grandes olhos azuis me acalentava, desejava vê-la, ser resgatado daquele antro! Sonhos e sóis e olhos azuis, luas e peles alvas... Não pude crer quando fui retirado da prateleira poeirenta pelas lindas mãozinhas da minha leitora adorada! Seria possível? Ela viera me resgatar!
Olhou-me com os grandes olhos azuis, desta vez iluminados por um irreverente azul, cintilante – diferente dos olhos pintados de preto que vira na minha outra eternidade -, o rosto mais fino, a expressão mais serena. Perguntou ao usurário quanto queria por mim, pagou e levou-me nos braços. Absurda felicidade. Não posso encontrar palavras para defini-la.
Ela me releria! Com o mesmo entusiasmo, atenção e amor!
Revi seu apartamento, seu quarto, sua gata, seus livros. Ela me abriu e me dissecou, olhos cirúrgicos, lapiseira na mão me sublinhando as palavras, circulando expressões e me escrevendo nas margens... Não conseguia tomar consciência de seus julgamentos, porém... O que poderia ser ruim? Essa menina me amara anos atrás, o que teria mudado?
Leu-me em uma tarde, circulou-me, sublinhou-me, enfatizou-me, assinalou-me, etiquetou-me, transcreveu-me, absorveu-me, fechou-me.
Mais tarde, ela voltou com outros livros, igualmente assinalados e etiquetados, e abriu-me nas páginas assinaladas pelas etiquetas coloridas. Comparou-me, contestou-me, refutou-me.
Cerrou-me e se foi. Na solidão feliz, resolvi tomar consciência das anotações da menina.
Letras garrafais berravam, expunham meus maiores temores: INVEROSSÍMIL! PERSONAGENS PLANOS E INCONSISTENTES! FALHAS NA TRAMA! DIÁLOGOS IMPOSSÍVEIS! FOCO NARRATIVO FALHO! DESCRIÇÕES DEMASIADO PROLIXAS! TRAMA ESTAPAFÚRDIA! RELAÇÃO ESPAÇO-TEMPO ANTIQUADA! Rotulou-me como livro mais INCONSISTENTE e ENTEDIANTE que já tivera o DESPRAZER de ler. Escreveu uma observação na minha última página: Aprendi que os leitores se refinam com o passar dos livros... Opiniões mudam, penso ter evoluído muito desde a primeira vez em que li este traste... Cinco anos fazem diferença.
E ela me descartou, como uma roupa que não serve mais.
Foi então que aprendi: Não existe um mundo das idéias. A minha leitora ideal é um brioche defeituoso no meio dos brioches defeituosos.


Em homenagem ao Dia do Livro...

Desculpem se não é o meu melhor trabalho...

1 Moedas no Cofrinho:

  1. Anônimo disse...
     

    Let me see...

    Moca de olhos grandes e azuis= Voce
    Rapaz de Gel = Everton
    Moca casa mofada = Bruna?? Essa nao tenho certeza
    Cara quadrada violinista = Erika... Quando tu falou em cara quadrada me passou pela cabeca "ERIKA? NAO PODE SER"
    Rapaz Labios finos = Nao sei.. mas pelo jeito Jota A

    Por fim, voce...

    A Gordinha eh a T... não é?

    Eu gostei do texto... Tipo... longo neh? Mas bom! ^^ Eu nao simpatizo com livros pensantes.. Acho q eles seriam menos deprimidos... Mas quem sou eu para julgar um livro pela capa, neh?

    Soh nao consegui descobrir qual o livro afinal... Qual é o livro? Qualquer coisa eu pergunto para a Érika amanhã... AMo-te Leia meu BLOG

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